Lembro-me perfeitamente de quando, algures em 2001, a Sega anunciou a sua retirada do mercado de hardware de consolas para se dedicar exclusivamente ao desenvolvimento como third party, uma decisão que se manteve até aos dias de hoje. Apesar de a Dreamcast ainda ter recebido alguns títulos de qualidade até ao ano seguinte, não tivemos de esperar muito até começarmos a ver os estúdios da gigante nipónica a anunciar jogos para outras plataformas. Entre simples conversões de jogos da Dreamcast, sequelas ou propriedades inteiramente novas, um dos destaques dessa onda inicial foi precisamente este GunValkyrie, desenvolvido pela Smilebit. Inicialmente concebido para a Dreamcast, acabou por se tornar um exclusivo da primeira consola da Microsoft, tendo sido lançado na primavera de 2002. O meu exemplar foi comprado a um amigo há já vários anos, embora já não me recorde exactamente quando.
O jogo decorre no ano de 1906, numa realidade alternativa e distópica do passado, onde, após a revolução industrial dos séculos XVIII e XIX, a tecnologia evoluiu de forma tão acentuada que o Império Britânico acabou por conquistar o mundo e expandir-se para o espaço, colonizando vários outros planetas. Assumimos o controlo de agentes de uma fictícia agência de inteligência imperial, enviados à colónia de Tir na Nog para investigar o desaparecimento dos seus colonos e, em seu lugar, o surgimento de uma raça de insectos gigantes. Ao longo do jogo, temos na verdade duas personagens à disposição: a jovem Kelly O’Lenmey e o japonês Saburouta Mishima. Kelly assume o papel de protagonista principal, destacando-se pela versatilidade do seu equipamento e das suas habilidades, enquanto Saburouta empunha uma arma consideravelmente mais poderosa, embora seja bastante menos ágil.

Pensem neste GunValkyrie como um jogo de acção em 3D com mecânicas interessantes, mas notoriamente complexas devido à sua exigente implementação nos controlos, o que resulta numa experiência com uma curva de aprendizagem bastante acentuada. De forma resumida, o jogo requer o uso intensivo de ambos os analógicos e dos gatilhos, com os botões faciais reservados quase exclusivamente para a selecção de armas. Desde o início aprendemos que o botão R serve para disparar a arma actualmente equipada, enquanto o L activa o propulsor nas costas da personagem, permitindo-lhe subir lentamente no ar, consumindo combustível visível no canto inferior esquerdo do ecrã. Este combustível regenera-se automaticamente quando não está a ser utilizado. Ao pressionar o analógico esquerdo em conjunto com uma direcção, executamos uma propulsão rápida (uma espécie de dash ou dodge) que pode ser usada tanto no solo como no ar. Existe também uma mecânica mais subtil, mas crucial: ao efectuar esse dash e, de seguida, mover o analógico (sem o pressionar) na direcção contrária, conseguimos manter a personagem quase estática no ar, numa queda lenta e com baixo consumo de combustível. Esta técnica permite-nos atacar inimigos a partir de uma posição mais vantajosa e, quando bem dominada, torna possível permanecer no ar durante largos períodos de tempo, algo que o próprio jogo espera que façamos com frequência.
Mas há mais nuances nos controlos. O analógico direito comanda a câmara, mas com o eixo vertical invertido, uma opção que infelizmente não pode ser ajustada nas definições (um inconveniente grande para mim, visto que prefiro o controlo padrão). Além disso, a rotação horizontal da câmara é bastante limitada, o que me obrigou durante muito tempo a reposicionar a personagem com o analógico esquerdo para obter o enquadramento desejado, o que por sua vez é um processo lento, que me causou bastantes dissabores em combate. Só mais tarde descobri que existe afinal uma mecânica de quick-turn: pressionar o analógico direito e movê-lo numa direcção faz com que a personagem se volte rapidamente para esse lado, algo que teria sido útil saber desde o início! Para além das barras de vida e de combustível do propulsor, existe ainda uma barra de energia adicional, que serve para executar ataques especiais, uma funcionalidade que também só vim a perceber mais tarde. Quando no solo, ambas as personagens podem activar um poderoso ataque (GV Napalm), ideal para situações em que estamos cercados, pressionando ambos os analógicos em simultâneo. Este ataque consome parte da energia especial, que pode ser reabastecida através de power-ups ou realizando combos aéreos bem-sucedidos. No ar, essa mesma combinação de analógicos activa uma habilidade diferente (o GV Meteor Crash) que projecta a personagem investida em chamas, causando dano a todos os inimigos no caminho. Esta habilidade está inicialmente disponível apenas para Saburouta, sendo que Kelly só a desbloqueia mais tarde.

No final de cada missão, a nossa performance é avaliada com base em critérios como o tempo gasto, número de inimigos derrotados e segredos encontrados. Em função do resultado, recebemos um ranking e uma quantidade de pontos que podem ser utilizados numa loja entre missões, onde se podem adquirir upgrades que melhoram a armadura, o consumo de combustível ou o sistema de lock-on da arma principal, entre outros. No caso de jogarmos com Kelly, o seu fato pode sofrer evoluções significativas, concedendo-lhe novas habilidades. A primeira transformação ocorre após derrotar um certo boss, desbloqueando precisamente o já referido Meteor Crash. A última evolução só é obtida ao encontrar todos os segredos espalhados pelos níveis, algo que não cheguei a completar, mas que, segundo consta, torna Kelly ainda mais móvel e poderosa. Por fim, ao terminarmos o jogo desbloqueamos um modo adicional (Challenge Mode), onde podemos rejogar qualquer nível com qualquer personagem, incluindo as variações evoluídas da Kelly que tenhamos desbloqueado.
No que diz respeito ao audiovisual, GunValkyrie revela-se um jogo interessante para os padrões de 2002. O seu conceito visual assenta firmemente numa estética steampunk, algo que se reflecte tanto no design das personagens como na arquitectura de certos níveis. Os primeiros cenários, mais abertos e áridos, apresentam um nível de detalhe algo modesto, com texturas simples e ambientes muito despidos, ainda que se destaque, curiosamente, o efeito visual impressionante da água numa das lagoas. Já os níveis mais fechados denotam grafismo mais cuidado, com texturas mais ricas e alguns efeitos visuais mais elaborados. Inicialmente comecei por jogá-lo na Xbox Series X poise este é, um dos poucos títulos da Xbox original compatíveis com o sistema, correndo com uma resolução superior. No entanto, essa melhoria vem acompanhada de alguma perda de qualidade, sobretudo nas cenas pré-renderizadas entre níveis, que sofrem com a compressão. Este efeito tornou-se ainda mais notório por eu utilizar um monitor ultrawide, um formato em que o jogo claramente não se adapta. Por outro lado, devido à elevada curva de aprendizagem e dificuldade, acabei por recomeçar o jogo no PC via emulação, sobretudo para tirar partido dos save states. Jogando em modo janela e com a resolução nativa em 4:3, o jogo revela uma apresentação bem mais fiel e agradável. Em termos sonoros, GunValkyrie oferece uma banda sonora ecléctica, alternando entre faixas orquestrais que evocam o imaginário de uma realidade steampunk dos séculos XIX e XX, e composições electrónicas mais enérgicas, que se adequam perfeitamente ao ritmo acelerado do jogo. O voice acting cumpre a sua função, embora o volume das vozes seja notavelmente baixo, o que faz com que muitas vezes fiquem abafadas pela música.

GunValkyrie é, em suma, um interessante jogo de acção, com mecânicas distintas e boas ideias que o diferenciam de muitos títulos contemporâneos. Contudo, os seus controlos complexos tornam a curva de aprendizagem bastante acentuada, o que pode afastar alguns jogadores. A experiência facilmente beneficiaria de uma execução mais intuitiva, mantendo a essência das mecânicas mas tornando-as mais acessíveis. Por exemplo, a utilização dos analógicos para um controlo de câmara e movimento mais fluídos, ou a inclusão de um botão dedicado ao dash (sendo que o botão X, por exemplo, não tem qualquer funcionalidade) são melhorias que se destacam de imediato. Curiosamente, o jogo começou por ser desenvolvido para a Dreamcast e, ao que tudo indica, estava pensado para utilizar em simultâneo um comando e uma lightgun, o que me deixa particularmente curioso sobre a visão original da equipa de desenvolvimento. Infelizmente, GunValkyrie não teve o sucesso comercial que a Sega possivelmente esperaria (talvez por ter sido um exclusivo de uma consola com pouca penetração no Japão) e, até aos dias de hoje, nunca teve direito a qualquer actualização ou sequela. Uma pena, pois havia aqui potencial para algo maior.

























